A democracia brasileira está rachando.

Foto do documento original da Constituição dos EUA
Embora eu não tenha nenhum apreço pela entidade que os Estados Unidos da América representam na comunidade internacional, seria desonesto da minha parte negar a importância que a Constituição estadunidense de 1787 representa à história da humanidade. Ela é há mais de dois séculos o maior sustentáculo da segunda democracia mais sólida e antiga do mundo, foi também a base para o surgimento do republicanismo presidencial, o federalismo e também o primeiro documento que garantiu força de lei às ideias iluministas. Tal importância se reflete não apenas em seu tempo em vigor, mas também na inspiração que deu à formação das primeiras repúblicas da América Latina. A Constituição da Primeira República Argentina (1853), por exemplo, é quase a Constituição Estadunidense escrita em castelhano. Assim como a Constituição Brasileira de 1891, que regeu a República Velha. 
Porém, apesar da incrível semelhança entre a Constituição Estadunidense e a Primeira Constituição da Argentina, os caminhos que as duas nações seguiram não são nada parecidos. Os EUA têm quase dois séculos e meio de estabilidade democrática interrompida apenas pela Guerra de Secessão, enquanto a Argentina, em menos de dois séculos teve inúmeras ditaduras, golpes, guerras civis e revoluções. Onde está então o ponto que causou tamanha diferença? Segundo os autores do best-seller "Como as democracias morrem", Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, a resposta não está nas leis escritas, e sim nas não escritas.
Todas as democracias sólidas têm regras de convenção. Coisas que não estão na letra da lei mas todos seguem, pois sua violação configura suicídio político. Vejamos o Reino Unido, por exemplo: na letra da lei, a escolha do primeiro-ministro é prerrogativa real, ou seja, a Rainha pode indicar quem bem entender. Mas qualquer um que acompanha a política britânica sabe muito bem que as coisas não são exatamente assim. O primeiro-ministro é um parlamentar que lidera o partido ou coalizão majoritária na Câmara dos Comuns, a indicação da Rainha é mero protocolo, já que ela sempre indica o líder da maioria na legislatura, embora não esteja escrito em absolutamente lugar nenhum que ela tenha que fazê-lo. Certamente, se a Rainha quisesse violar essa tradição, o povo se revoltaria e questionaria a legitimidade da monarquia. Na maioria das democracias consolidadas, há várias regras não-escritas, mas as duas mais importantes sempre são a tolerância mútua e a reserva institucional.
Não entendeu o significado de tolerância mútua?
Olhe para essa imagem.
A tolerância mútua é quando os políticos e partidos, mesmo que rivais, reconhecem-se como legítimos e como igualmente merecedores do direito de disputar pelo poder e governar. Desde a redemocratização, o Brasil ia bem nesse princípio. PT e PSDB, até então hegemônicos na política brasileira, embora rivais, se toleravam, mas nunca perdiam uma oportunidade de se cutucar. O próprio Fernando Henrique já disse sobre a posse de Lula: "Foi um momento emocionante entregar a faixa presidencial a um ex-operário." Todos os candidatos derrotados nas eleições presidenciais reconheciam a vitória de seus adversários e a legitimidade da eleição. Até que, em 2014, após perder a eleição em segundo turno por uma desvantagem apertadíssima para Dilma Rousseff, que concorria pela reeleição, Aécio Neves decide pedir a auditoria das urnas. Quando a auditoria insiste na vitória apertada de Dilma, Aécio quebra o princípio de tolerância mútua, decide não reconhecer o resultado da eleição e em célebre discurso diz: "Não perdemos a eleição para um partido, mas sim para uma organização criminosa. Hoje somos oposição, mas amanhã seremos o governo!" Ao fazê-lo, Aécio além de abrir as portas do inferno para que vários grupos subterrâneos antidemocráticos tivessem combustível para questionar Dilma e roubassem a cena na política nacional. Esse capital político, somado ao apoio midiático, levou ao impeachment de Dilma.
Augusto Aras, o "homem forte do Presidente" na
PGR.
A segunda regra não escrita é a reserva institucional. Segundo Levitsky e Ziblatt, as origens da reserva institucional remontam ao absolutismo. O absolutismo se baseia no princípio de "Dieu et mon droit" ("Deus e meu direito", em francês), ou seja, o rei é um escolhido divino, portanto, todo o poder emana dele e ele é inquestionável. Se um rei quisesse usar de seu poder para pilhar vilas, legalmente nada o impedia, afinal, ele era a lei. Porém, apesar de não serem impedidos pela lei, os reis se abstinham de cometer esse tipo de coisa já que isso poderia causar um revolta popular. Reserva institucional, portanto, é quando um governante se reserva de usar todos os seus poderes. Outro exemplo disso foi a já citada prerrogativa real para a escolha do primeiro-ministro no Reino Unido. Este princípio também está se deteriorando. Embora a Constituição Federal atribua ao Presidente da República o direito de escolher livremente seu indicado à Procuradoria-Geral da República - O cargo de chefia do Ministério Público Federal -, desde 2001, há uma eleição interna no MPF que indica três candidatos, a chamada lista tríplice, então, o Presidente indica um desses três e o Senado ratifica a indicação. Essa tradição foi criada para evitar o aparelhamento do MPF, embora não haja nenhuma referência a ela na Constituição. Ano passado, tudo corria bem. Os três nomes da lista foram: Mário Bonsaglia, Blal Dalloul e Luiza Frischeisen. Ambos promotores respeitadíssimos. Até que Bolsonaro decide passar por cima e indica Augusto Aras. Na letra da lei, o que Bolsonaro fez não é ilegal, mas viola a reserva institucional. Algo interessante de se observar é que Bolsonaro comete o aparelhamento de órgãos do estado sob a justificativa de combatê-lo.
Aquilo que Ziblatt e Levitsky chamam de "as grades de proteção da democracia" está cedendo no Brasil. Há motivo para alarme.

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