Opinião: O que há por trás da vitória avassaladora dos Tories no Reino Unido?

Antes eu tinha profunda convicção de que, após passados três anos, no caso de um segundo referendo sobre o divórcio do Reino Unido com a União Européia, o "ficar" venceria. Agora, já não tenho mais certeza. 

Em 2015, o então Primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, do Partido Conservador, acabou involuntariamente criando um monstro, o Brexit. E quando chamo o Brexit de "monstro", não digo isso por rejeição à pauta, na verdade, embora na minha opinião seja mais vantajosa uma aproximação da Grã-Bretanha com a Europa do que com os Estados Unidos, entendo completamente a posição dos cidadãos britânicos cansados da burocracia de Bruxelas e Frankfurt. Digo "monstro" porque esse saturadíssimo assunto passou três anos e meio devorando toda a estabilidade política e a governabilidade do Reino Unido. Assim que viu o resultado do plebiscito, David Cameron renunciou, dizendo em sua última sabatina no Parlamento que "O Partido Conservador não terá nenhuma pressa em conduzir a saída do Reino Unido da U.E." Dito e feito. Assim como David, Theresa May, a parlamentar escolhida pelo partido para sucedê-lo no cargo de Primeiro-ministro não estava nem um pouco entusiasmada na tarefa de pôr o resultado em prática. 
Amarelo = ficar; Azul = sair.
O principal argumento dos brexiteers era o de invocar o resultado do referendo de 2015 para provar que a saída era a vontade do povo. Porém, após algum tempo, eu passei a questionar a validade desse argumento: será que essa ainda era a vontade do povo? Haviam bons motivos para acreditar que após três longos anos, os britânicos voltariam atrás na decisão tomada em 2015. Primeiro porque na época, o "sair" havia ganhado com uma vantagem pífia de dois pontos percentuais, tendo vencido apenas na Inglaterra e perdido feio na Escócia, em Gales, e na Irlanda do Norte. Além de vários incidentes que, ao meu ver, desgastariam a imagem do Brexit diante da opinião pública, como o escândalo da Cambridge Analytica, que revelava a disseminação deliberada de fake news pró-Brexit pelas redes sociais durante a campanha do plebiscito, além do assassinato de Jo Cox, parlamentar Trabalhista e anti-Brexit por um militante do "Britain First!", partido nanico de extrema-direita. 
Theresa May, como Primeira-ministra, não conseguia aprovar no Parlamento uma resolução negociada da crise, já que enfrentava dura oposição e desagradava gregos e troianos na Câmara dos Comuns - a câmara baixa do legislativo britânico -, onde haviam alguns setores contra o Brexit, setores que defendiam um acordo mais amplo do que aquele estava sendo proposto e setores mais radicais que sequer defendiam um acordo. Após ser derrotada em três tentativas diferentes de aprovar um acordo e se livrar de uma moção de desconfiança por pouquíssimos votos, em julho deste ano, May faz um discurso de renúncia contendo-se para não chorar. Com Theresa fora da jogada, o partido deveria escolher um novo líder, que consequentemente também seria o novo Primeiro-ministro. Aí entra a cópia de bolso de Trump: Boris Johnson. Boris é um brexiteer radical que defende a separação com ou sem acordo, mas tinha um obstáculo no caminho: não controlava a maioria da Câmara dos Comuns. Tentou prolongar as férias do Parlamento até outubro para governar sem ser incomodado por algumas semanas. O que pela Common Law, lei de convenção não escrita que rege a política do país, não era inconstitucional, porém a medida autoritária de Johnson foi vetada pela suprema corte por ilegitimidade. Portanto, seguindo as normas do regime Parlamentarista, Johnson pede à Rainha que dissolva o Parlamento e convoque novas eleições.
As eleições aconteceriam em dezembro, no início do rigoroso inverno europeu, ou seja, convencer o eleitorado a se mobilizar era muito importante, já que no Reino Unido votar não é obrigatório. E  então chegamos ao dia da tragédia: no dia 12 de dezembro, quinta-feira, os Conservadores conquistaram 365 cadeiras, a maioria das 560 em disputa, o que não ocorria desde a eleição de Tony Blair em 2000. E os recordes não param por aí: os Tories não tinham um resultado tão positivo desde as eleições de 1983, enquanto os Trabalhistas, principal partido de oposição, não tinham um resultado tão negativo desde 1935. 
Como o debate sobre o Brexit e o debate puramente eleitoral eram indissociáveis, alguns diziam que e eleição geral desse ano seria um segundo plebiscito, acredito que o erro foi primeiramente do Partido Trabalhista, que deixava um vácuo de propostas no assunto. Vácuo preenchido por Boris Johnson, que se aproveitou da saturação do povo britânico para com esse assunto e o explorou muito inteligentemente. "Get Brexit Done!" - "Termine o Brexit!", em tradução livre - foi o slogan de campanha de Boris. Outro problema foi a liderança fraca de Jeremy Corbyn e de Jo Swinson, líderes dos partidos Trabalhista e Liberal-Democrata, com Jo inclusive ficando fora do Parlamento por perder no próprio distrito. Os britânicos, em sua compreensível pressa virar a página de vez, erraram ao meu ver. Com nove anos de governo Tory, o N.H.S. (Serviço Nacional de Saúde), primeiro serviço de saúde pública do mundo, referência global que inspirou até o S.U.S., tem recebido um financiamento cada vez menor. Além disso, perderam a oportunidade de avançar para uma economia mais eco-sustentável, já que os Tories não tomam parte no debate sobre as mudanças climáticas. E o mais perigoso de tudo: como já vem se vendo na Escócia, o Brexit pode representar um risco existencial para o Reino Unido. Sendo ele posto em prática, movimentos separatistas de regiões que votaram contra a separação, como Irlanda do Norte e Escócia, serão atiçados, podendo isso futuramente representar uma dissolução do Reino Unido.

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